Se é difícil imaginar como seria o mundo sem o flagelo agridoce da comédia e suas inúmeras derivações, tanto mais árdua é a simples hipótese de admitir a vida como uma superfície chapada, falta de nuanças, de cores outras que não aquelas eleitas pela maioria, um moto-contínuo em que homens e mulheres lançam-se na aventura da existência cada vez mais cedo, e enfrentando tudo o que tal decisão implica sem questionar nada, abdicando do direito a qualquer desacordo não por convicção, mas por medo, sentimento que se apossa da natureza humana valendo-se quase sempre das deficiências obscuras que nos rebaixam a todos. Segundo de uma bem-sucedida franquia que venceu o século 20 sem maiores impedimentos, “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” é uma trama ao mesmo tempo impetuosa, sardônica, de uma acidez meio corrosiva, mas nunca gratuito ou descortês e muito menos rude. A direção dos xarás Terry Gilliam e Terry Jones, também protagonistas do nonsense lúcido das histórias levadas à tela entre 1969 e 2014, flutua entre a sensatez e o escracho sem pudor nenhum de parecer leviana ou datada, o atributo que, sem exagero, faz das performances do grupo britânico um patrimônio a ser mantido para as futuras gerações.
Gilliam, Jones e os mais de trinta atores que passaram pela trupe, gente do quilate de Sir Michael Caine e Myrtle Devenish (1912-2007), decerto poderiam julgar meio laudatória e peremptória demais tal sentença, mas bastam uns poucos minutos para se alcançar a conclusão de que não se rodam mais filmes de humor como antigamente. Onde mais se vê textos refinados que sabem misturar piadas antimonarquistas a uma militância quase sutil, mas assombrosamente firme contra a dita hegemonia inglesa sobre a Europa — estamos falando de 1975, quando o filme foi lançado —, defendida por súditos da onipresente (e onipotente) Elizabeth II (1926-2022), e mais escatologia, perversões sexuais, religião, uma ingênua revisão histórica e, por óbvio, o politicamente incorreto que pontua toda narrativa cômica que se preze? O roteiro não vai muito além de uma imaginária odisseia do célebre Rei Arthur, de Graham Chapman (1941-1989), à procura de cavaleiros dignos e bravos o suficiente para merecer acompanhá-lo em uma importante missão: a busca do Santo Graal, o cálice em que Jesus teria bebido com os apóstolos na Última Ceia, antes de ser traído e crucificado. Os diretores entram nos temas que desejam fustigar tomando essa premissa, que fica sempre muitos níveis acima do que se passa no corpo do enredo. O saboroso mesmo no transcurso de hora e meia de um filme que, propositalmente ou não, emula o andamento do teatro, são minudências como a falta intencional de alimárias durante a viagem até Camelot, “defeito” que o departamento de som supre com folga. Entre uma e outra gracinha, Chapman delicia a audiência desfiando bifes quilométricos sobre a potência da andorinha africana, superior à europeia — analogia que nada tem de sexual, e conduz o raciocínio do público direto para o que se está verdadeiramente querendo comunicar —; a monarquia como uma ditadura com glacê, em que o povão sofre de privações e de fome sem jamais saber de quem é a culpa; e, encarnando o próprio espírito de Shakespeare, faz uso do controverso humor inglês — anódino para uns, mordaz para outros tantos, mas sempre muito sofisticado e nada evidente ou reducionista — para cutucar todas as feras com a vara mais curta disponível. O que se nota, por exemplo, na virada do primeiro para o segundo ato, quando um Deus visivelmente diabólico surge no céu questionando a postura pusilanimemente submissa de Arthur, cheia de salamaleques e mesuras hipócritas, e legitima sua empreitada. Sir Lancelot, o Bravo, personagem de John Cleese; Sir Robin, o Não-tão-Bravo-quanto-Sir Lancelot, vivido por Eric Idle; Sir Galahad, o Puro, rebatizado Bedivere, de Terry Jones (1942-2020), e outros cínicos postulantes a herói aderem à loucura mais e mais vívida de Arthur, reordenando um dos eventos mais semanticamente poderosos da Idade Média.
Como se vê, poucos filmes na história do cinema demandam do espectador um repertório tão vastamente multidisciplinar quanto este, mas como o humor não foi feito para rir de ninguém, todos, claro, acham hilariantes as doidices de uma história confessamente kitsch, artesanal até, que concentra toda a suavidade no subtexto e deixa as imagens fazerem o trabalho bruto. “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado” é um trabalho primoroso, que remete a um tempo de muito mais classe inclusive para deslindar-se assuntos espinhosos, um tempo de que todos nós flagramos saudosos, mormente depois que nos damos conta de que há muito comediante para tão pouca graça.